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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

CAMILO CASTELO BRANCO: SOBRE O ESPIRITUOSO

Camilo Castelo Branco, por Mário Santos, 1917
O artista utilizou como base do retrato o documento fotográfico, uma vez que Camilo se suicidou a 1 de junho de 1890. O pintor escolheu uma fotografia – rara, aliás – em que Camilo aparece sem o seu inseparável “pince-nez”.
 

 
“Ordinariamente, chamam-se, à francesa, «espirituosos» uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. São os caricaturistas da graciosidade.
O «espirituoso», à moderna, abrange os variados ofícios que, antes da nacionalização daquele estrangeirismo, pertenciam parcialmente aos seguintes personagens, uns de casa, outros importados: chocarreiro – trejeiteador – arlequim – palhaço – proxinela – polichinelo – maninelo – truão – jogral – goliardo – histrião – farsista – farsola – vejete – bobo – pierrot – momo – bufão – folião, etc.
Esta riqueza de sinonímia denota que o «bobo» medieval bracejou na Península Ibérica vergônteas e enxertias em tanta cópia que foi preciso dar nome às espécies.
Ora, o «espirituoso» tem de todas. A antiga «jogralidade», que era mester vil, acendrada nos secretos crisóis do progresso social, chegou a nós afidalgada em «espírito», e com o foro maior da faculdade poderosa, cáustica, implacável. (…)
Há poucos meses, faleceu em Lisboa um «espirituoso» que andou trinta ou quarenta anos a passear a sua reputação entre o Chiado e o Rossio. As gazetas, ao mesmo passo que nos inculcavam o defunto como pessoa que vivera aventurosamente uns setenta anos tingidos com primoroso pincel, descontavam nestes defeitos a sua imensa graça, e reproduziram nova edição melhorada das suas anedotas.
Averiguado o «espírito» do homem em coisas burlescas de que fez mercancia na feira política, liquida-se, quando muito, um folião que desbragava a pena e desembestava asselvajadamente o insulto. Por este, que não deixou nome sobrevivente para vinte e quatro horas – nem o terá aqui –, orça a maioria dos jograis que tenho visto, nos últimos trinta anos, esburgar o osso da facção que lhes alquila o engenho detraidor, e acabarem antes da geração que os galardoou com a moeda falsa das risadas.
O satírico de sala e botequim é mais funesto e menos trivial que o político; mais funesto porque vulnera melindres – coisa que o caloso peito da política não tem nem finge; menos trivial, porque o chiste de Sterne, de Byron, de Voltaire, do padre Isla, de Heine e Boerne não apegou aqui, nem se adelgaça à feição da nossa índole, bem acentuada nas chocarrices plebeias de Gil Vicente e António José.
É mais funesto, repito; porque me ocorre hoje, regressando das Caldas de Vizela, uma história funestíssima de que só eu posso lembrar-me. Duas chalaças terçadas entre dois amigos cavaram sepulturas de vidas e honras. Se as novelas pudessem ensinar alguma coisa, corrigindo aleijões da alma, eu pediria aos gracejadores que lessem isto; e, nas ocasiões em que a língua lhes descabe na boca, engrossada pela opilação da dicacidade, a refreassem com os dentes. (…)”
Camilo Castelo Branco, “Gracejos que Matam”, in Novelas do Minho, Lisboa, Bertrand Editores, 2009, pp.21-22.

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