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Escola Secundária José Saramago - Mafra

terça-feira, 26 de março de 2013

A PAIXÃO, de Almeida Faria

Almeida Faria (nasceu em Montemor-o-Novo, em 1943)
Imagem daqui.


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João Carlos
Estou sentado e estudo esta coisa certa e definitiva: o preço como elemento essencial da compra e venda; a manhã aberta entra pela janela no ondear já quente das cortinas; penso em outra coisa oclusa e breve completamente diferente da que estudo; um largo prato de barro serve-me de cinzeiro, posto no chão; em propícia posição para meditação, medito nesta verdade de estar vivo e dentro duma vida que, contudo, me escapa, vera vontade, pressa de com alguém falar, ainda que sobre nada; entretanto vou, com insistência, sublinhando as palavras pretium certum justam verum e em dinheiro; (…) mas eis que oiço na rua, um pouco ao longe, para além do quintal que me afasta do mundo, uma voz arrastada, fina, frágil, que me envolve de paz: anda filho, vamos mas é para casa, anda mais depressa que a mãe não pode com o saco, anda filho, anda depressa, que o pai quer o almoço e não o tenho ainda, e não te pares assim constantemente no caminho, anda filho, anda depressa, dá-me a tua mãozinha senão o lobisomem leva-te, anda, vamos para casa; e os passos a par se afastam, pela calçada que sobe, cheia de som e eco da manhã que também, a custo, a pulso, sobe; com ela me volto, em solidão e difícil harmonia, para uma condição de estudo e de universidade; a universidade é um conjunto de edifícios novos, arrogantes, pretendendo-se belos, ali em pleno campo raso, verde durante grande parte do ano; ponta de Lisboa apontada ao futuro incerto, de dentro das suas vísceras velhas; velho gueto repressivo, carreirismo, inutilidade, autossuficiência vil, senil; (…) num primeiro plano lateral, a faculdade de direito, as suas formas cúbicas sobre o jardim deserto, a arcada rígida, baixos-relevos pobres na parede, com os eternos símbolos de cega justiça e barriguda família, os desenhos do átrio, humorístico-hieráticos, do Almada, com clássicos juristas desde Hammou-Rabi (2000 a.C.) até Heraclito e Pitágoras, Paulo e Agostinho, Rómulo e Remo, Apio Claudio e decênviros, os cinco da lei das citações, Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino, e por aí diante, até aos portugueses; entre esta faculdade e a reitoria (comprida a todo o equilíbrio do frontão com janelas, com míticas imagens laterais de Capricórnio e Câncer) salta a mancha de cores encarniçadas outrora vivas da cantina, de fachada de vidros, mas fechada pela polícia, tendo uma estrutura quase abstrata à ponta (…); finalmente, à extrema direita, no plano mais próximo, (…) a faculdade de letras, espelho da de direito, com figuras da dita cultura humanística, um tanto desesperadas, talvez porque sobressai D. Quixote e o Pessoa «menino de sua mãe» contrastando com a estátua de D. Pedro, o V deste nome, no pátio ajardinado; (…) agora está mais quente, está mesmo já calor; (…) do céu escorre o sono e uma sede sem tréguas nem remédio, sede da noite e do sonho (primeiro Osíris, o sol, é derrotado pela noite, Set, porém a esposa-vaca-lua, Ísis, vem procurar, pálida e triste, o seu cadáver frio e enfim o filho, Hórus, sol-nascente, vinga-se e vence, nasce, vive, esplende e uma vez mais o astro magno impera) (…).
Almeida Faria, A Paixão, Lisboa, Assírio & Alvim, 12ª edição (1ª edição em 1965), 2013, pp.102-105
 
Excerto do Prefácio, assinado por Óscar Lopes, em 12-4-1966:
“A palavra «poeta» na sua origem grega designa o fazedor ou produtor em oposição ao utente ou executante, ou seja, em literatura, o cantor, o recitador, narrador ou leitor. Originariamente, portanto, o poeta não se opõe ao prosador, até porque a prosa, como órgão literário (e até como órgão didático e doutrinário) é uma simples extensão, menos regular da poesia. Em alemão Dichter tanto designa um versificador como um novelista; uma Poética é, em sentido clássico, uma teoria e preceituário de arte literária: e a própria palavra prosa designa ainda na liturgia medieval um texto não sujeito a ritmo versificado mas sujeito a um ritmo musical, o da sequência prolongadora da palavra Aleluia. Ora, eu tenho agora pena de não existir em português uma palavra com a extensão semântica do Dichter germânico, porque era o que dava bem com Almeida Faria. A Paixão será um romance; mas é também um poema em ritmo livre, em ritmo tão livre que próprio leitor o determinará a seu modo, ad libitum do humor momentâneo, como o requer a própria pontuação aberta, toda em vírgula ou ponto e vírgula. (…)”
 

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