Marc Chagall, Paysage Vert (1949)
“A saudade e o sebastianismo são as duas principais características da cultura portuguesa geralmente apontadas em textos que ensaiam uma definição do homem português (da alma portuguesa) ou, como alguns preferem dizer, da personalidade cultural portuguesa. Pensadores ligados ao movimento da filosofia portuguesa – de Sampaio Bruno, Cunha Seixas e Álvaro Ribeiro aos mais modernos como António Quadros ou Pinharanda Gomes – e mais isolados entre si como Jaime Cortesão, Magalhães Godinho, Cunha Leão, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, António José Saraiva, Joel Serrão, Manuel Antunes, Orlando Ribeiro ou Jorge Dias, por exemplo, deram, e alguns dão ainda, importantes contributos para a definição do homem português e do carácter nacional. Interessa, porém, salientar, desde já, que, a nosso ver, não é tanto a veracidade dos traços apontados que nos importa (…), mas a forma como estes espelham uma imagem que de nós próprios fomos construindo ao longo de séculos. A Saudade e o sebastianismo, então, podendo ser ou não, do ponto de vista cultural, características que, de facto, nos individualizam, são, com certeza, imagens multisseculares com as quais nos identificamos, passíveis de condicionar, por sua vez, muitas das nossas manifestações culturais. A insensibilidade a este modo de perspectivar o problema tem sido, parece-nos, a principal razão das acesas polémicas que tais temas têm suscitado.
Comecemos
pela Saudade, palavra de sentido dito intraduzível dada a complexidade afectiva
que pressupõe, sentimento-ideia tido como peculiar do povo português, cuja
constância e persistência na cultura portuguesa tem sido atestada por numerosos
críticos, sobretudo como motivo de inspiração lírica e de reflexão filosófica. Assim,
descobrem-na na poesia e na prosa portuguesas com uma incidência
estatisticamente superior à de qualquer outra literatura, das cantigas de amor
e de amigo ao Cancioneiro Geral, não esquecendo a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro ou um Frei Agostinho da
Cruz, de Sá de Miranda a Garrett, de António Nobre aos mais modernos, como
Irene Lisboa, Rodrigues Miguéis ou David Mourão-Ferreira, e apontam-na como
tema rico de implicações várias em textos filosóficos, principalmente
portugueses e galegos, que sublinham a complexidade deste nó afectivo de
difícil penetração. Lembrança, sentido de coração, paixão de alma, tristeza da
separação, gosto romântico da solidão, sentimento ontológico puro, sentimento
da totalidade, do desvanecido, ânsia do Ser, oscilação entre o aqui e o ali,
cobiça do longe, procura de um abrigo, desejo de um bem perdido, etc., têm sido
tópicos para uma definição da Saudade que ainda hoje permanece em aberto. A primeira
referência irá sempre, porém, para D. Duarte que, no Leal Conselheiro, comparava a «suidade» com outras palavras
afins (nojo, pesar, desprazer, avorrecimento) para concluir da sua
especificidade e intraduzibilidade, e para Duarte Nunes de Leão que, seguindo
os mesmos passos, tentava a primeira definição de Saudade - «Lembrança de
alguma coisa com desejo dela».
Neste percurso
vivencial da Saudade tem especial relevo a figura de Teixeira de Pascoaes, seu
poeta por excelência. Em primeiro lugar, porque, para além de a nomear e
invocar nos seus versos, a introjectou como força-motriz de todo o seu universo
imaginário, modelando o clima inspirado dos seus poemas, a composição sui generis
da sua linguagem, a tessitura formal, conceptual e temática da sua escrita;
depois, porque, em termos filosóficos, a elevou à altura do sentimento mais
perfeito do homem, fonte da sua espiritualidade, sentimento-ideia de força
ascensional, aperfeiçoadora, que vai do mineral ao espiritual e que nele
conhece a sua expressão mais sagrada, o seu contacto com Deus; por fim, porque,
dado o contexto histórico-social do tempo, não só a defendeu como
característica individualizadora do povo português, povo privilegiado, por isso
mesmo, entre os outros povos, como, sobretudo, a defendeu como possível motor
do ressurgimento nacional. Ao culto da Saudade, assim encarada, chamou Pascoaes
simplesmente saudosismo. (…)”
Maria das Graças Moreira de Sá, “Duas palavras sobre a Saudade e o
Saudosismo”, in As Duas Faces de Jano –
Estudos de Cultura e Literatura Portuguesas, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2004, pp.45-47.
Sem comentários:
Enviar um comentário