Blimunda
Imagem daqui.
“Durante
nove anos, Blimunda procurou Baltasar. Conheceu todos os caminhos do pó e da
lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina,
dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer. Tisnou-se de
sol como um ramo de árvore retirado do lume antes de lhe chegar a hora das
cinzas, arregoou-se como um fruto estalado, foi espantalho no meio de searas,
aparição entre os moradores das vilas, susto nos pequenos lugares e nos casais
perdidos. Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e
estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado da guarda real,
barba toda e grisalha, mas se entretanto a rapou, é uma cara que não se
esquece, pelo menos não a esqueci eu, e tanto pode ter vindo pelas estradas de
toda a gente, ou pelos carreiros que atravessam os campos, como pode ter caído
dos ares, num pássaro de ferro e vimes entrançados (…). Julgavam-na doida, mas,
se ela se deixava ficar por ali uns tempos, viam-na tão sensata em todas as
mais palavras e acções que duvidavam da primeira suspeita de pouco siso. Por fim
já era conhecida de terra em terra, a pontos de não raro a preceder o nome de
Voadora, por causa da estranha história que contava. Sentava-se às portas, a
conversar com as mulheres do lugar, ouvia-lhes as lamentações, os ais, menos
vezes as alegrias, por serem poucas, por as guardar quem as sentia, talvez
porque nem sempre há a certeza se sentir o que se guarda, é só para não ficar
desprovido de tudo. Por onde passava ficava um fermento de desassossego, os
homens não reconheciam as suas mulheres, que subitamente se punham a olhar para
eles, com pena de que não tivessem desaparecido, para enfim poderem procurá-los.
(…)
Nove anos
procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o
sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia, quatro,
cinco, às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números, não tardou que
o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde,
noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau,
encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira
de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os
dissesse (…).
Milhares de
léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se
espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes
passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão
qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra
língua, e voltava para trás. (…)
Encontrou-o.
Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. (…)”
José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 2ª
edição, 1983, pp.353-356
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