“E pois
parece que lhes toca mais os Portugueses, que a outra nação do mundo, o dar-lhe
conta desta generosa paixão, a quem somente nós sabemos o nome, chamando-lhe
saudade, quero eu agora tomar, sobre mim esta notícia. Floresce entre os
Portugueses a saudade por duas causas, mais certas em nós que em outra gente do
mundo; porque de ambas essas causas tem seu princípio. Amor e ausência são os
pais da saudade; e como nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por
amoroso, e nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências; de aí vem,
que donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas, e
esta foi sem falta a razão porque entre nós habitassem, como em seu natural
centro. Mas porque tenho por certo que fui eu o primeiro neste reparo, parece
que não será repreensível que me detenha algum tanto, por fazer anatomia em um
afecto; o qual, ainda que padecido de todos, não temos todavia averiguado se
compete às injúrias, ou aos benefícios, que do amor recebem os humanos; (…)
É a
saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão subtil, que equivocamente se
experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal, de que se
gosta, e um bem, que se padece: quando fenece, troca-se a outro maior contentamento,
mas não que formalmente se extinga: porque se sem melhoria se acaba a saudade,
é certo que o amor e o desejo se acabarão primeiro. Não é assim com a pena;
porque quanto é maior a pena, é maior a saudade, e nunca se passa ao maior mal,
antes rompe pelos males; conforme sucede aos rios impetuosos, conservarem o
sabor das suas águas, muito espaço de misturar-se com as ondas do mar, mais
opulento. Pelo que diremos que ela é um suave fumo do fogo do amor, e que do
próprio modo que a lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e cheiroso, assim
a saudade, modesta e regulada, dá indícios de um amor fino, casto e puro. Não necessita
de larga ausência; qualquer desvio lhe basta, para que se conheça. Assim prova
ser parte do natural apetite da união de todas as coisas amáveis e semelhantes;
ou ser aquilo falta, que da divisão dessas coisas procede. Compete por esta
causa aos racionais, pela mais nobre porção que há em nós; e é legítimo
argumento da imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre
nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor que
nós mesmos (…); sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se
disséssemos: um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos
espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e
temporalmente, o que está de nós remoto e incerto; mas um e outro fim, sempre
debaixo das premissas de bom e deleitável. Esta é em meu juízo a teórica das
saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora
divinamente.”
D. Francisco Manuel de Melo, Epanáforas de Vária História Portuguesa, excerto da
Epanáfora Amorosa III, 1660, in Filosofia da
Saudade, Seleção e Organização de Afonso Botelho e António Braz Teixeira,
Coleção Pensamento Português, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986,
pp. 19-20.
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