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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

LITERATURA E CINEMA OU VICE-VERSA?

Foto e legenda da autoria de Lia Costa Carvalho, daqui.





Godard dit qu’entre cinéma et littérature,
«on est dans deux trains qui se croisent sans arrêt».

Jean-Louis Leutrat, “Deux trains qui se croisent sans arrêt”,
in Cinéma et littérature, le grand jeu, sous la direction de Jean-Louis Leutrat, Grenoble, De l’Incidence Editeur, 2010, p. 12.




Ao serem visionados, alguns filmes têm o condão de acordar zonas mais ou menos adormecidas na região das memórias literárias. Isso não acontece, por vezes, durante o primeiro visionamento, nem no momento do segundo, é preciso, em alguns casos, fazerem-se outras revisitações, como se o filme teimasse em não se mostrar por completo a quem o vê, pelo menos nos aspetos que com ele se relacionam, ou, em outras circunstâncias, como se a memória já estivesse arrumada em arquivo moribundo e se recusasse a ser incomodada no seu escaninho. De todas as formas, o despertar dessas memórias ocorre apenas quando o objeto fílmico se adensa, ganhando uma espessura semântica capaz de se fazer ecoar na bagagem literária do sujeito. Aparece, aqui, o leitor/ espectador-autor – aquele que, no momento da receção, a jusante da obra artística, com a sua leitura e o seu olhar, participa, junta uma adenda, o seu constructo, e contribui, dessa forma, para o estabelecimento de um modo novo de ler a literatura e o cinema.
Vem-me à memória o filme Bom Povo Português (Rui Simões, 1980), que despertou em mim, no momento em que o vi pela segunda vez, uma ponte semântica, com o seu primeiro pilar principal neste filme e apoiando o segundo na obra literária Levantado do Chão (José Saramago, 1980). O espoletar do reconhecimento, neste caso da cena inaugural do filme, um parto aparentemente real, numa obra literária ou, antes, naquilo que de simbólico têm nela a personagem Maria Adelaide Espada e alguns dos quadros narrados, impeliu-me, num movimento de aproximação tanto ao filme como ao livro, a empreender, num e noutro "comboio", ao longo do percurso que fazem e no momento em que se cruzam,  uma busca minuciosa de outras identidades comuns que permitissem um diálogo entre as duas artes.
O facto de o filme assinado por Rui Simões não poder ser etiquetado como filme de ficção (embora nele encontremos laivos de alguma liberdade criadora), mas, sim, como um documentário que pretende deixar registados alguns dos momentos mais importantes do tempo em que então se vivia (figurando um passado ainda muito recente) em Portugal e fora de portas, e de a obra de José Saramago poder ser lida como um texto poético (como se de um poema épico se tratasse no que ao assunto diz respeito – metonimicamente, a saga de uma família que está para todo um povo –, não respeitando, bem entendido, os aspetos formais do género) levou-me a esta referência.
Se não se soubesse que tanto o livro como o filme datam do mesmo ano, poder-se-ia aventar a possibilidade de o escritor se ter inspirado no filme para escrever o seu livro. A presença do cinema na literatura fica, neste caso, excluída. De igual forma, o contrário poderia ter sido, ainda que remotamente, uma eventualidade. O que, uma vez mais, não aconteceu. Embora o filme tenha sido começado em 1976 (curiosamente o mesmo ano em que o autor de Levantado do Chão se vê obrigado a abandonar as funções que desempenhava no Diário de Notícias e se refugia em Lavre, Montemor-o-Novo, com a intenção de pôr em formato de livro o Alentejo e a sua gente), só foi estreado em 1980, na Figueira da Foz, tendo, mais tarde e ainda nesse mesmo ano, sido projetado em São Paulo e em Cartagena (Colômbia). A impressão de haver uma evidência à partida – Saramago inspirado por Rui Simões – revelou-se falaciosa (o realizador garante ter mostrado montagens do filme, entre 1976 e 1980, mas não a José Saramago, escritor que não conhecia nessa época); da mesma forma, a possibilidade de os pontos comuns encontrados serem explicados por influência inversa – Saramago inspirador de Rui Simões – é também refutada pelo próprio realizador.
Está-se, assim, em presença de duas obras, filme e livro, concebidas e realizadas sem que se registassem influências de um ou de outro lado. Fica a ideia de que o que as motivou foi assaz forte e falou suficientemente alto para inspirar um realizador e um escritor a expressarem, cada um à sua maneira, é certo, uma mesma realidade. A forma como o fizeram, sublinhando alguns aspetos comuns a ambos, identificando-se com certas temáticas, leva-me a concluir que poderá haver duas leituras semelhantes do mesmo fenómeno, por pessoas distintas, com diferenciadas formas de expressão. Aqui a literatura e o cinema não se cruzaram a meio do trajeto, mas encontraram-se na estação, quando os respetivos comboios estavam ainda lado a lado.


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