Godard
dit qu’entre cinéma et littérature,
«on
est dans deux trains qui se croisent sans arrêt».
Jean-Louis Leutrat, “Deux trains qui se croisent sans
arrêt”,
in Cinéma
et littérature, le grand jeu, sous la direction de Jean-Louis
Leutrat, Grenoble, De l’Incidence
Editeur, 2010, p. 12.
Ao serem visionados, alguns filmes têm o
condão de acordar zonas mais ou menos adormecidas na região das memórias
literárias. Isso não acontece, por vezes, durante o primeiro visionamento, nem
no momento do segundo, é preciso, em alguns casos, fazerem-se outras
revisitações, como se o filme teimasse em não se mostrar por completo a quem o
vê, pelo menos nos aspetos que com ele se relacionam, ou, em outras
circunstâncias, como se a memória já estivesse arrumada em arquivo moribundo e se recusasse a ser incomodada no seu escaninho. De todas as formas, o despertar
dessas memórias ocorre apenas quando o objeto fílmico se adensa, ganhando uma
espessura semântica capaz de se fazer ecoar na bagagem literária do sujeito.
Aparece, aqui, o leitor/ espectador-autor – aquele que, no momento da receção,
a jusante da obra artística, com a sua leitura e o seu olhar, participa, junta
uma adenda, o seu constructo, e contribui, dessa forma, para o estabelecimento
de um modo novo de ler a literatura e o cinema.
Vem-me à memória o filme Bom Povo Português (Rui Simões, 1980), que despertou em mim, no
momento em que o vi pela segunda vez, uma ponte semântica, com o seu primeiro pilar principal neste filme e apoiando o segundo na obra literária Levantado do Chão (José Saramago, 1980).
O espoletar do reconhecimento, neste caso da cena inaugural do filme, um parto
aparentemente real, numa obra literária ou, antes, naquilo que de simbólico têm
nela a personagem Maria Adelaide Espada e alguns dos quadros narrados, impeliu-me,
num movimento de aproximação tanto ao filme como ao livro, a empreender, num e noutro "comboio", ao longo do percurso que
fazem e no momento em que se cruzam, uma busca minuciosa de outras identidades comuns que
permitissem um diálogo entre as duas artes.
O facto de o filme assinado por Rui Simões
não poder ser etiquetado como filme de ficção (embora nele encontremos laivos
de alguma liberdade criadora), mas, sim, como um documentário que pretende
deixar registados alguns dos momentos mais importantes do tempo em que então se
vivia (figurando um passado ainda muito recente) em Portugal e fora de portas,
e de a obra de José Saramago poder ser lida como um texto poético (como se de
um poema épico se tratasse no que ao assunto diz respeito – metonimicamente, a
saga de uma família que está para todo um povo –, não respeitando, bem
entendido, os aspetos formais do género) levou-me a esta referência.
Se não se soubesse que tanto o livro como o
filme datam do mesmo ano, poder-se-ia aventar a possibilidade de o escritor se
ter inspirado no filme para escrever o seu livro. A presença do cinema na
literatura fica, neste caso, excluída. De igual forma, o contrário poderia ter
sido, ainda que remotamente, uma eventualidade. O que, uma vez mais, não
aconteceu. Embora o filme tenha sido começado em 1976 (curiosamente o mesmo ano
em que o autor de Levantado do Chão se
vê obrigado a abandonar as funções que desempenhava no Diário de Notícias e se refugia em Lavre, Montemor-o-Novo, com a
intenção de pôr em formato de livro o Alentejo e a sua gente), só foi estreado
em 1980, na Figueira da Foz, tendo, mais tarde e ainda nesse mesmo ano, sido projetado
em São Paulo e em Cartagena (Colômbia). A impressão de haver uma evidência à
partida – Saramago inspirado por Rui Simões – revelou-se falaciosa (o
realizador garante ter mostrado montagens do filme, entre 1976 e 1980, mas não
a José Saramago, escritor que não conhecia nessa época); da mesma forma, a
possibilidade de os pontos comuns encontrados serem explicados por influência
inversa – Saramago inspirador de Rui Simões – é também refutada pelo próprio
realizador.
Está-se, assim, em presença de duas obras,
filme e livro, concebidas e realizadas sem que se registassem influências de um
ou de outro lado. Fica a ideia de que o que as motivou foi assaz forte e falou suficientemente alto para inspirar um realizador e um escritor a
expressarem, cada um à sua maneira, é certo, uma mesma realidade. A forma como
o fizeram, sublinhando alguns aspetos comuns a ambos, identificando-se com
certas temáticas, leva-me a concluir que poderá haver duas leituras semelhantes
do mesmo fenómeno, por pessoas distintas, com diferenciadas formas de expressão.
Aqui a literatura e o cinema não se cruzaram a meio do trajeto, mas
encontraram-se na estação, quando os respetivos comboios estavam ainda lado a
lado.
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