Carta de Fernando Pessoa a Miguel Torga
“O universal é o
local sem paredes.”
Miguel Torga, “Trás-os-Montes no Brasil”,
Traço de União, in Ensaios e Discursos, Lisboa, 1ª edição
conjunta,
Publicações Dom Quixote, 2001,
p.147
“Torga,
que se declarou religioso como qualquer homem tende naturalmente a ser (como
afirmou numa entrevista), nunca foi ortodoxo em relação a credo nenhum. (…)
Mas, como confessou, não era ateu. A mesma confissão fez Fernando Pessoa, mais
velho do que ele dezanove anos, que tomou São Francisco de Assis como modelo de
Alberto Caeiro, a quem chamou mesmo «o São Francisco de Assis do novo
paganismo». Uma comparação entre os dois Meninos Jesus que ambos criaram, um em
Bichos, no conto “Jesus”, o outro no oitavo poema do «Guardador de Rebanhos»,
confirma profundas afinidades: em ambos, a mesma humanização do divino que
deixa de residir no Céu (donde foge, como diz Caeiro) para vir brincar com os
meninos da sua idade e esfolar os joelhos no real quotidiano. Assiste-se, no
conto, ao milagre do nascer de uma nova vida a desabrochar de um ovo
(tabernáculo do único mistério, o da Vida) que o menino tirou de um ninho. O mistério
e o milagre aparecem, assim, como realidades do dia-a-dia, e não acenos de um
outro plano superior, mansão de um deus transcendente. No poema do «Guardador
de Rebanhos», Caeiro vê «Cristo descer à terra» e reincarnar numa «criança
bonita de riso natural» que vive na sua aldeia e é, para ele, «o divino que
sorri e brinca». A lição de Alberto Caeiro e desse «paganismo novo» de que foi
feito Mestre é a mesma que a de Miguel Torga, embora este se não tivesse
aplicado, como Pessoa, a criar um qualquer movimento para propor as suas
convicções. (…)
A lição
do Mestre Alberto Caeiro, a quem Álvaro de Campos chamou «espírito humano da
terra materna», é precisamente a da raiz, a de viver no rés-do-chão do real,
antepondo a matéria ao espírito, o corpo à alma. Acontece que esta «raiz,
ligação directa com a terra» que Pessoa não tinha – e quis aprender a ter
através de Caeiro – foi sempre natural tropismo de Miguel Torga, presente em
toda a sua obra. (…)
Em 1936,
ainda sob a emoção da morte de Pessoa (que registou no Diário),
Torga escreve os seus Poemas Ibéricos,
com Mensagem no horizonte. Mas a
epopeia torguiana afirma-se pela sua diferença: a pátria de que se sente filho
é mais vasta que a de Pessoa, é a Ibéria toda, a sua «terra esbraseada». Para Pessoa
a pátria é uma alma e uma realidade virtual: «Nós, Portugal, o poder ser»; para
Torga é, sobretudo, um corpo – o materno corpo a que o bicho que somos se
agarra, com unhas e dentes.
Estes Poemas Ibéricos
não cantam, como os da Mensagem, a
gesta dos Descobrimentos, pelo contrário, denigrem o mar, «essa sereia rouca e
triste», que nos atraiu para nos trair. Pessoa exalta a distância, «a proibida
azul distância», Torga condena a ambição ou o louco impulso que leva o homem
para longe desse chão em que, como bicho da terra que é, se deve cumprir. É
assim que reduz D. Sebastião a um louco perdido pela sua mania de grandeza
(Pessoa fá-lo exclamar: «Louco, sim, louco, porque quis grandeza»). (…)
Há (…)
duas pátrias, para Torga: um chão de terra e a fala. Torga cita Junqueiro, no Diário, que
afirmou, bem antes de Bernardo Soares, «a língua é uma pátria». E é essa
profunda convicção que o faz escrever no último volume do Diário: «sou também
brasileiro, angolano, moçambicano, goês, macaense, caboverdeano, guinéu,
timorense e cidadão de todos os mundos por nós descobertos e por descobrir […]».
A verdade
é que na pátria-língua do homem de cultura que Miguel Torga sempre
militantemente foi não cabem discriminações de nuclear ou periférica terra ou
mar, dentro ou fora.”
Teresa Rita
Lopes, “Traves Mestras do Edifício Torguiano”, in Agenda 2007 – Miguel Torga, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2006.
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