Abel Manta, Retrato de Aquilino Ribeiro, 1936
“Aquela
noite, tinha-se acabado de cear, botei o aparelho ao macho com cilha dobrada
para maior segurança. E, depois de meter o bacamarte e a merenda nos alforges,
fui prendê-lo com nó singelo, bom de desatar, à boqueira da quintã de meu tio
Agostinho como viageiro pacato que deixa ali a besta e vai dar o seu recado, se
é que não entrou na taverna a beber meio. O muro era baixo e quedei-me,
cotovelos por cima da albarda, a espiar a casa e a vizinhança, à espera da paz
morta de Barrelas, quando as ruas ficam apenas para os gatos e as almas do
outro mundo. Estava o ar fresco e, na hora pasmada que começara a correr, uns
tamancos ao largo a descer o patim para os cortelhos, o vagido dum menino de
mama, prato a tinir contra prato, eram como pedras que caíam num poço e ficavam
afundidas. Aqui e além, na oficina do Bártolo sapateiro, no sótão do Albino
alfaiate, a luz da candeia riscava as portas gretadas e cosia com seu fio
amarelo os rombos das almofadas carcomidas. Entretanto que serenava, tanto ia
olhando umas coisas e outras, como me entretinha a deitar palpites sobre o
êxito da empreitada, nanja a perguntar aos meus botões se fazia bem, se fazia
mal. Estava decidido e mais que decidido, e nada deste mundo me desviaria do
propósito, nem o anjo Gabriel de espada em riste ou um santo com as melhores
razões do céu. (…)”
Aquilino
Ribeiro, O Malhadinhas, Lisboa,
Bertrand Editora, 2011, pp. 42-43.
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