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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O MALHADINHAS

Abel Manta, Retrato de Aquilino Ribeiro, 1936
Imagem daqui.
 

“Aquela noite, tinha-se acabado de cear, botei o aparelho ao macho com cilha dobrada para maior segurança. E, depois de meter o bacamarte e a merenda nos alforges, fui prendê-lo com nó singelo, bom de desatar, à boqueira da quintã de meu tio Agostinho como viageiro pacato que deixa ali a besta e vai dar o seu recado, se é que não entrou na taverna a beber meio. O muro era baixo e quedei-me, cotovelos por cima da albarda, a espiar a casa e a vizinhança, à espera da paz morta de Barrelas, quando as ruas ficam apenas para os gatos e as almas do outro mundo. Estava o ar fresco e, na hora pasmada que começara a correr, uns tamancos ao largo a descer o patim para os cortelhos, o vagido dum menino de mama, prato a tinir contra prato, eram como pedras que caíam num poço e ficavam afundidas. Aqui e além, na oficina do Bártolo sapateiro, no sótão do Albino alfaiate, a luz da candeia riscava as portas gretadas e cosia com seu fio amarelo os rombos das almofadas carcomidas. Entretanto que serenava, tanto ia olhando umas coisas e outras, como me entretinha a deitar palpites sobre o êxito da empreitada, nanja a perguntar aos meus botões se fazia bem, se fazia mal. Estava decidido e mais que decidido, e nada deste mundo me desviaria do propósito, nem o anjo Gabriel de espada em riste ou um santo com as melhores razões do céu. (…)”
Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas, Lisboa, Bertrand Editora, 2011, pp. 42-43.


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