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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

RELEMBRANDO ILSE LOSA (1913 - 2006)


Informações sobre a escritora e a sua obra aqui

Em 2013, comemora-se o centésimo aniversário de Ilse Losa. Para assinalar a efeméride, aqui fica um texto do seu livro de crónicas À Flor do Tempo.


O QUE LÁ VAI LÁ VAI

«O que lá vai lá vai», ouve-se frequentemente dizer. E, não raras vezes, acrescenta-se: «Eu não olho para trás, mas sempre para a frente», o que pretende soar a heroísmo mas, bem analisado, não tem consistência. Não há dia e nem sequer hora em que não olhemos para trás. Basta termos memória. Por tudo e por nada associamos palavras, sítios, objectos, comidas, leituras, caras, acontecimentos, com alguma coisa ouvida, vista, comida, lida, vivida. E mesmo os heróis de designíos relevantes e que afirmam olhar sempre para a frente por, desse modo, desejarem corrigir os males do nosso mundo, evocam, de certeza, tal como toda a gente, os eventos bons e maus que lhes ficaram para trás.
Na realidade, esse «O que lá vai, lá vai» ou o «Águas passadas não movem moinhos» são ditos cujo desígnio é arredar recordações de acontecimentos calamitosos na nossa vida e deixar ficar apenas as horas soalheiras. Seria bom se isto fosse possível. Ou talvez nem fosse, porque podia fazer de nós qualquer coisa como patetas alegres...
Pois quando eu, outro dia, estava sentada no sossego de uma tarde primaveril numa esplanada da Foz do Douro, contemplando o mar brando, pacífico, os meus olhos caíram sobre o molhe que se estendia solidamente pelo mar dentro, na intenção de abrigar das ondas e dos vendavais as embarcações.
Não havia nada de especial para ver naquele cais, sequer algum pacato passeante. E, no entanto, eu vi um jovem a atravessá-lo. Vi o mar agitar-se, vi o jovem a parar no final do molhe, a fitar as águas tempestuosas, deixar-se salpicar pelo chuvisco trazido das ondas. Talvez achasse tudo isso belo ou divertido ou assustador. Tanto não pude ver. Mas vi uma das ondas a empinar-se e, qual animal raivoso, a galgar para cima do molhe, envolver o jovem e levá-lo consigo.
Este jovem apareceu na cidade uns poucos dias antes de rebentar a Segunda Guerra Mundial. Falara com excitação da sua sorte de ter conseguido, à última hora, salvar-se das garras dos carrascos e de estar na posse de um visto para a América do Norte, que amigos de lá lhe tinham arranjado. Faltava-lhe apenas o bilhete de uma passagem de barco. Estivera contente e confiante... Estremeci. O dia estava magnífico, o mar um remanso, o molhe sólido, vazio. E eu a cismar num acontecimento que já lá vai...

LOSA, Ilse - O que lá vai, lá vai. In À Flor do Tempo: crónicas. Porto: Edições Afrontamento. 1997. ISBN 972-36-0434-5, p. 23-24.

Livro disponível na BE. 


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