“Entrámos num
grande aposento com as paredes de madeira. Pendia do teto uma lâmpada de luz
amarelada. A mesa, por qualquer razão, intrigou-me. Na mesa havia uma
clepsidra, a primeira que vi, além de uma gravura de aço. O homem indicou-me
uma das cadeiras.
Ensaiei diversos
idiomas e não nos entendemos. Quando ele falou fê-lo em latim. Reuni as minhas
já longínquas memórias de bacharel e preparei-me para o diálogo.
- Pelo traje
– disse-me -, vejo que chegas de outro século. A diversidade de línguas favorecia
a diversidade dos povos e até das guerras; a Terra regressou ao latim. Há quem
receie que torne a degenerar em francês, em limusino ou em papiamento, mas o
risco não é imediato. De mais a mais, nem o que foi nem o que será me
interessam. (…)
Atravessámos
um corredor com portas laterais que dava para uma pequena cozinha onde tudo era
de metal. Voltámos com o jantar numa bandeja: malgas com espigas de milho, um
cacho de uvas, uma fruta desconhecida cujo sabor me recordou o do figo e um
grande jarro de água. Creio que não havia pão. As feições do meu hóspede eram
agudas e tinha algo de singular nos olhos. Não esquecerei esse rosto severo e
pálido que não tornarei a ver. Não gesticulava ao falar.
Tolhia-me a
obrigação do latim, mas finalmente disse-lhe:
- Não te
assombra a minha súbita aparição?
- Não –
replicou-me -, tais visitas ocorrem-nos de século em século. Não duram muito; o
mais tardar estarás amanhã em tua casa.
A certeza da
sua voz bastou-me. Julguei prudente apresentar-me:
- Sou Eudoro
Acevedo. Nasci em mil oitocentos e noventa e sete, na cidade de Buenos Aires. Completei
já setenta anos. Sou professor de letras inglesas e americanas e escritor de
contos fantásticos. (…)
Numa das
paredes vi uma estante. Abri um volume ao acaso; as letras eram claras e
indecifráveis e traçadas à mão. As suas linhas angulosas recordaram-me o
alfabeto rúnico, que, no entanto, só se empregou para a escrita epigráfica. Pensei
que os homens do porvir não só eram mais altos, como mais destros. Instintivamente
olhei para os longos e finos dedos do homem.
Este disse-me:
- Agora vais
ver algo que nunca viste.
Passou-me com cuidado um exemplar de A Utopia de More, impresso em Basileia no ano de 1518 e em que faltavam folhas e gravuras.
Não sem
fatuidade repliquei:
- É um livro
impresso. Lá em casa haverá mais de dois mil, embora não tão antigos nem tão
preciosos.
Li em voz
alta o título.
O outro
riu-se.
- Ninguém
pode ler dois mil livros. Nos quatro séculos que levo de vida não terei passado
de uma meia dúzia. Aliás não é ler que importa, mas reler.”
Jorge Luís
Borges, O Livro de Areia, Lisboa,
Quetzal Editores, 2011, pp. 90-92.
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