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Escola Secundária José Saramago - Mafra

terça-feira, 13 de novembro de 2012

DA SAUDADE IV

Cais das Colunas, Lisboa, 1973.
Fotografia de Eduardo Gageiro
 

2- A Pedra, o Barco e o Tempo

Chego com minha irmã a Lisboa. Entramos no estuário do Tejo, sempre bonito, azul e inesperado, com um mar que se abre quando esperávamos o conchego apertado de um porto urbano. Pergunto-me se estas larguezas do Tejo frente a Lisboa terão alguma coisa a ver com o carácter dos seus habitantes: franzino nos actos concretos, amplo nos desejos. Doroteia está ausente, partiu para Cabo Verde com seu marido logo que soube das más notícias. Possivelmente cruzámo-nos no caminho, na lonjura das águas.
Nossos parentes em Lisboa recebem-nos o melhor possível, auxiliam-nos na nossa tarefa. No entanto com demasiada frequência encontramos pessoas arrogantes. Olham-nos de alto a baixo, procurando o erro no nosso traje, o provincianismo nas maneiras, o sinal de afastamento de Lisboa, que todos consideram insuportável ou mesmo fatal para a cultura e para o espírito. Ou então olham-nos como lendas vivas, como gente recém-escapada às feras, às febres e aos canibais. Cabo Verde?, dizem, onde fica ao certo? Depois perguntam as coisas mais tolas: não há elefantes? Não é perigoso e terrífico viver em ilhas, assim no meio do mar, abertas às tempestades? Apercebo-me de que imaginam as ilhas inteiramente galgadas e varridas pelas vagas oceânicas, que nos imaginam agarrados aos rochedos como lapas, e que simultaneamente suspeitam selvas densas e palmares, animais monstruosos, algures, talvez também entre a espuma das ondas.
E o principal passatempo das gentes mais endinheiradas de Lisboa, ou que de qualquer forma se consideram ilustres, é o de se mostrarem uns aos outros. Passeiam nas ruas não porque tenham um trajecto a cumprir, de obrigação ou recreio, mas para ostentarem os novos luxos adquiridos, e olham em volta para verem quantos olhares os olham. No teatro olham-se uns aos outros, de binóculo, e ficam mais contentes com a quantidade de presenças que conseguem reconhecer do que com a qualidade do espectáculo.
A saudade de Cabo Verde torna-se cada dia maior, enorme. A propósito de um cheiro, ou de uma cor, a propósito de nada, rasgam-se no meu espírito visões instantâneas e inteiras, como se às ilhas me transportasse súbito milagre, e eu me encontrasse numa praia, num cimo dum monte ou num barco. Uma saudade palpável, espessa mesmo, como se até aqui eu tivesse arrastado a alma de todo o arquipélago.”
Maria Isabel Barreno, O Senhor das Ilhas, Lisboa, Editorial Caminho, 1998, pp.93-94.

 

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