Cais das Colunas, Lisboa, 1973.
Fotografia de Eduardo Gageiro
“2- A Pedra, o Barco e o Tempo
Chego com
minha irmã a Lisboa. Entramos no estuário do Tejo, sempre bonito, azul e
inesperado, com um mar que se abre quando esperávamos o conchego apertado de um
porto urbano. Pergunto-me se estas larguezas do Tejo frente a Lisboa terão
alguma coisa a ver com o carácter dos seus habitantes: franzino nos actos
concretos, amplo nos desejos. Doroteia está ausente, partiu para Cabo Verde com
seu marido logo que soube das más notícias. Possivelmente cruzámo-nos no
caminho, na lonjura das águas.
Nossos parentes
em Lisboa recebem-nos o melhor possível, auxiliam-nos na nossa tarefa. No entanto
com demasiada frequência encontramos pessoas arrogantes. Olham-nos de alto a
baixo, procurando o erro no nosso traje, o provincianismo nas maneiras, o sinal
de afastamento de Lisboa, que todos consideram insuportável ou mesmo fatal para
a cultura e para o espírito. Ou então olham-nos como lendas vivas, como gente
recém-escapada às feras, às febres e aos canibais. Cabo Verde?, dizem, onde
fica ao certo? Depois perguntam as coisas mais tolas: não há elefantes? Não é
perigoso e terrífico viver em ilhas, assim no meio do mar, abertas às
tempestades? Apercebo-me de que imaginam as ilhas inteiramente galgadas e
varridas pelas vagas oceânicas, que nos imaginam agarrados aos rochedos como
lapas, e que simultaneamente suspeitam selvas densas e palmares, animais
monstruosos, algures, talvez também entre a espuma das ondas.
E o
principal passatempo das gentes mais endinheiradas de Lisboa, ou que de
qualquer forma se consideram ilustres, é o de se mostrarem uns aos outros. Passeiam
nas ruas não porque tenham um trajecto a cumprir, de obrigação ou recreio, mas
para ostentarem os novos luxos adquiridos, e olham em volta para verem quantos
olhares os olham. No teatro olham-se uns aos outros, de binóculo, e ficam mais
contentes com a quantidade de presenças que conseguem reconhecer do que com a
qualidade do espectáculo.
A saudade
de Cabo Verde torna-se cada dia maior, enorme. A propósito de um cheiro, ou de
uma cor, a propósito de nada, rasgam-se no meu espírito visões instantâneas e
inteiras, como se às ilhas me transportasse súbito milagre, e eu me encontrasse
numa praia, num cimo dum monte ou num barco. Uma saudade palpável, espessa
mesmo, como se até aqui eu tivesse arrastado a alma de todo o arquipélago.”
Maria Isabel
Barreno, O Senhor das Ilhas, Lisboa,
Editorial Caminho, 1998, pp.93-94.
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