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Escola Secundária José Saramago - Mafra

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

NOS 90 ANOS DE JOSÉ SARAMAGO: TRÊS FADAS E UM MENINO...

Imagem daqui.



“MAGNÍFICO REITOR DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Em rotações e translações o mundo precisou de dar muitas voltas antes de se decidir a trazer-me a este acto, embora me seja impossível crer que às fadas que me assistiram no nascimento lhes tivesse passado pela cabeça a louca fantasia de incluírem a Universidade de Coimbra no cabaz das prendas com que haviam achado razoável agraciar-me, as quais, aliás, das prendas falo, imediatamente se percebeu serem das mais modestas. Nem naquela época (mais de oitenta anos passaram já sobre o dia de Novembro em que abri os olhos para a luz), nem naquele lugar (uma pobre aldeia do Ribatejo), e menos ainda a baixíssima condição social do recém-nascido, propenderiam as potências do destino a prodigalizar-se em dádivas. Não obstante, recapitulando o que depois me viria a suceder na vida, olhando quanto e a quem nesta hora me rodeia, chego à interessante conclusão de que uma terceira providenciadora da sorte, também escalada para comparecer à cabeceira do meu berço de tábuas mal ajustadas, deverá ter perdido a bússola entre as espessas cabeleiras dos olivais da Azinhaga (hoje escalpados) e por isso a sua varinha de condão não pôde estar presente na junta vaticinadora encarregada de traçar as linhas do meu fado. É voz antiga que ninguém foge ao seu destino, mas não se repara que tão grande verdade só é explicável pelo facto de o regulamento das fadas impor às ocasionais faltosas a obrigação de cometerem mais tarde, sozinhas, a parte do seu trabalho que deveriam ter feito em parceria com as colegas pontuais. Por tal razão é que algumas vidas, que até certa altura levavam um rumo discreto e alheio ao mundanal ruído, deram, de repente, uma guinada noutra direcção, e, sem que na altura se tivessem percebido muito bem as causas da mudança do tempo, a brisa passou a soprar com maior firmeza e constância, as velas encheram-se redondas e as ilhas desconhecidas começaram a levantar os seus cumes acima do horizonte. No meu caso, Magnífico Reitor, a fada retardatária levou nada menos que sessenta anos a dar comigo, mas, graças a ela, pude finalmente escrever o Memorial do Convento, e os carrilhões de Mafra, desde então (…) não têm parado de tocar…
Ignoro, Magnífico Reitor, quantas teriam sido as fadas que estiveram no feliz e nunca assaz festejado nascimento da Universidade de Coimbra, porém imagino que não teriam sido mais que as três do costume. Imagino também que nenhuma se demorou pelo caminho e que todas cumpriram a sua missão com a competência e a solenidade requeridas. Mas uma coisa é nascer uma criança na aldeia da Azinhaga e outra, muito diferente, foi terem-se aberto ao mundo as portas de uma Universidade como esta, para quem oitenta anos iriam ser uma juventude e muito mais dilatados os seus próprios memoriais. Pertence aos domínios do óbvio que três simples fadas, por muito informadas que estivessem dos arcanos, não teriam arcaboiço para prever tanto e tão variado futuro. Inclino-me portanto a crer que, ao longo da sua existência, esta Universidade de Coimbra terá recebido, regularmente, de tempos a tempos, a visita de outras fadas, munidas das chaves e conhecedoras dos segredos com que teriam de abrir-se as novas portas e, pelo sim, pelo não, porque algo do passado haverá sempre que levar na mochila das viagens ao porvir, se manteriam entreabertas as antigas. O velho não é apenas um último resto sobrante do novo que havia sido, nele reside também, ainda que à vista desarmada possa não o parecer, a referência melhormente futurível do novo em preparação. Não sendo esta a circunstância nem este o lugar adequado para justificar e demonstrar tão categórica e aparentemente contraditória asserção, retomo o fio do meu discurso sobre o papel das fadas na vida dos seres humanos em geral (incluído este que aqui se encontra) e das universidades (esta de Coimbra em particular), atrevendo-me a propor, Magnífico Reitor, a mais do que plausível probabilidade de que a tal minha fada retardatária, considerando insuficiente, talvez por um inapagado remorso, o muito que em meu favor já havia feito, tenha vindo, como ao longo dos séculos vieram tantas outras por motivos de maior calado, chamar a estes veneráveis umbrais, impelida por uma ideia cuja generosidade só tinha equivalente na desmedida, isto é, que por vós me fosse outorgado o grau de Doutor honoris causa, ou, por outras palavras, mais retoricamente, que por um instante se cruzassem as linhas das nossas vidas, a da Universidade que sois e a do homem e do escritor que sou. O instante é este, e será, como tantos, irremediavelmente breve, mas a honra, essa, haverá de perdurar enquanto eu viva.”
Doutoramento Honoris Causa de José Saramago, 11 de Julho de 2004, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2004, pp.11-13.

 

1 comentário:

  1. A fada tardou mas não lhe faltou. Talvez até nunca lhe tenha faltado. Pode ter sido sempre, durante os sessenta anos, a luz que o orientou no caminho!

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