“MAGNÍFICO REITOR DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Em
rotações e translações o mundo precisou de dar muitas voltas antes de se
decidir a trazer-me a este acto, embora me seja impossível crer que às fadas
que me assistiram no nascimento lhes tivesse passado pela cabeça a louca
fantasia de incluírem a Universidade de Coimbra no cabaz das prendas com que
haviam achado razoável agraciar-me, as quais, aliás, das prendas falo,
imediatamente se percebeu serem das mais modestas. Nem naquela época (mais de
oitenta anos passaram já sobre o dia de Novembro em que abri os olhos para a
luz), nem naquele lugar (uma pobre aldeia do Ribatejo), e menos ainda a
baixíssima condição social do recém-nascido, propenderiam as potências do
destino a prodigalizar-se em dádivas. Não obstante, recapitulando o que depois
me viria a suceder na vida, olhando quanto e a quem nesta hora me rodeia, chego
à interessante conclusão de que uma terceira providenciadora da sorte, também
escalada para comparecer à cabeceira do meu berço de tábuas mal ajustadas,
deverá ter perdido a bússola entre as espessas cabeleiras dos olivais da
Azinhaga (hoje escalpados) e por isso a sua varinha de condão não pôde estar
presente na junta vaticinadora encarregada de traçar as linhas do meu fado. É
voz antiga que ninguém foge ao seu destino, mas não se repara que tão grande
verdade só é explicável pelo facto de o regulamento das fadas impor às
ocasionais faltosas a obrigação de cometerem mais tarde, sozinhas, a parte do
seu trabalho que deveriam ter feito em parceria com as colegas pontuais. Por tal
razão é que algumas vidas, que até certa altura levavam um rumo discreto e
alheio ao mundanal ruído, deram, de repente, uma guinada noutra direcção, e,
sem que na altura se tivessem percebido muito bem as causas da mudança do
tempo, a brisa passou a soprar com maior firmeza e constância, as velas
encheram-se redondas e as ilhas desconhecidas começaram a levantar os seus
cumes acima do horizonte. No meu caso, Magnífico Reitor, a fada retardatária
levou nada menos que sessenta anos a dar comigo, mas, graças a ela, pude
finalmente escrever o Memorial do
Convento, e os carrilhões de Mafra, desde
então (…) não têm parado de tocar…
Ignoro,
Magnífico Reitor, quantas teriam sido as fadas que estiveram no feliz e nunca
assaz festejado nascimento da Universidade de Coimbra, porém imagino que não
teriam sido mais que as três do costume. Imagino também que nenhuma se demorou
pelo caminho e que todas cumpriram a sua missão com a competência e a
solenidade requeridas. Mas uma coisa é nascer uma criança na aldeia da Azinhaga
e outra, muito diferente, foi terem-se aberto ao mundo as portas de uma
Universidade como esta, para quem oitenta anos iriam ser uma juventude e muito
mais dilatados os seus próprios memoriais. Pertence aos domínios do óbvio que
três simples fadas, por muito informadas que estivessem dos arcanos, não teriam
arcaboiço para prever tanto e tão variado futuro. Inclino-me portanto a crer
que, ao longo da sua existência, esta Universidade de Coimbra terá recebido,
regularmente, de tempos a tempos, a visita de outras fadas, munidas das chaves
e conhecedoras dos segredos com que teriam de abrir-se as novas portas e, pelo
sim, pelo não, porque algo do passado haverá sempre que levar na mochila das
viagens ao porvir, se manteriam entreabertas as antigas. O velho não é apenas
um último resto sobrante do novo que havia sido, nele reside também, ainda que
à vista desarmada possa não o parecer, a referência melhormente futurível do
novo em preparação. Não sendo esta a circunstância nem este o lugar adequado
para justificar e demonstrar tão categórica e aparentemente contraditória
asserção, retomo o fio do meu discurso sobre o papel das fadas na vida dos
seres humanos em geral (incluído este que aqui se encontra) e das universidades
(esta de Coimbra em particular), atrevendo-me a propor, Magnífico Reitor, a
mais do que plausível probabilidade de que a tal minha fada retardatária,
considerando insuficiente, talvez por um inapagado remorso, o muito que em meu
favor já havia feito, tenha vindo, como ao longo dos séculos vieram tantas
outras por motivos de maior calado, chamar a estes veneráveis umbrais, impelida
por uma ideia cuja generosidade só tinha equivalente na desmedida, isto é, que
por vós me fosse outorgado o grau de Doutor honoris causa, ou, por outras
palavras, mais retoricamente, que por um instante se cruzassem as linhas das
nossas vidas, a da Universidade que sois e a do homem e do escritor que sou. O instante
é este, e será, como tantos, irremediavelmente breve, mas a honra, essa, haverá
de perdurar enquanto eu viva.”
Doutoramento Honoris Causa de José Saramago, 11 de Julho de 2004, Coimbra, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2004, pp.11-13.
A fada tardou mas não lhe faltou. Talvez até nunca lhe tenha faltado. Pode ter sido sempre, durante os sessenta anos, a luz que o orientou no caminho!
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