Leonardo da Vinci, Estudo de Mãos
“Através dos milénios, a linguagem tornar-se-á um
tão importante instrumento, que, quando a criança hoje aprende a falar, aprende
ao mesmo tempo, sem que a gente dê por isso, toda uma maneira de conceber o
mundo. «Uma maneira de conceber o mundo», disse eu. A própria palavra maneira deriva da palavra mão. Por meio da linguagem manejamos um sistema complicado de
classificação e de relacionação das coisas. Há mesmo quem tenha definido a
ciência moderna, com a sua estrutura matemática, como não passando de uma linguagem bem feita. (…)
A tradição oral é muito anterior e muito mais
importante historicamente do que a literatura escrita. E, no entanto, a escrita
foi mais uma grande conquista, uma forma superior de manusear as coisas: evoluindo lentamente a partir do simples
desenho, a escrita tornou-se um conjunto de sinais que correspondem às
palavras, que já eram sinais de coisas. A escrita fonética é feita, portanto de
sinais de sinais. Sob certo aspecto, pode portanto dizer-se que o espírito
humano agarra cada vez mais de longe
os objectos materiais, mas isso quer dizer que os agarra melhor, mais planeadamente,
numa conjunção mais eficaz, e social, da inteligência e da acção. (Deixem-me
observar, entre parêntesis, que as palavras que designam certos elementos do
pensamento, tais como conceito, compreensão, provêm de radicais latinos
que significam agarrar, prender, e outras acções manuais.) (…)
Ninguém hoje contesta, julgo eu, que estamos
perante uma nova crise nas relações entre o cérebro e a mão do homem. Mais uma
vez, a mão cresceu e qualificou-se de tal modo, que o espírito humano, ou pelo
menos certas formas do espírito humano, perderam o controlo sobre elas. De nada
serve cobrir a máquina de apóstrofes, culpar a máquina de todos os males que
sofremos. Nem sequer se pode dizer que os problemas postos pela máquina
resultem de um pretenso domínio da matéria sobre o espírito, pois a máquina não
é matéria bruta; a máquina representa uma vitória do espírito sobre a matéria,
é uma criação, um produto do homem. A palavra máquina vem mesmo de uma palavra em Latim que significa,
propriamente, estratagema, artimanha, ou plano. A máquina resulta de um estratagema do espírito destinado a
vencer a matéria, graças ao uso consciente das próprias leis da matéria. A
máquina é uma humanização da matéria (…).”
Óscar Lopes, As Mãos e o Espírito, Porto, Campo das
Letras, 2007, pp.33-61.
Dos Editores: “Com
esta nova edição de As Mãos e o Espírito,
texto de uma lição tão
particularmente significativo na vida e na obra do seu autor, assinalamos o 90º
aniversário de Óscar Lopes, de cuja obra nos orgulhamos de ser editores.”
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