Estátua de Saladino (1174-1193), em Damasco.
Imagem daqui.
“(…)
Deveis saber (…) que se a inépcia derruba muitas vezes os homens das boas
situações que possuem, condenando-os à pior das misérias, o sentido do
a-propósito, pelo contrário, livra o indivíduo avisado dos perigos e dá-lhe um
repouso grande e total. O facto de a estupidez arrastar os homens da felicidade
para a miséria é uma verdade de que há, sob os nossos olhos, muitos exemplos. De
momento, não tenciono referir-me a tal coisa. Todos os dias se nos oferecem mil
provas disso. A minha historieta mostrar-vos-á, porém, em poucas palavras, e
tal como vos prometi, que o sentido do a-propósito pode ser um instrumento de
salvação.
O seu valor excepcional permitiu a
Saladino não só tornar-se, apesar da sua origem modesta, sultão de Bagdad, mas
também conseguir muitas vitórias sobre os reis sarracenos e cristãos. Ao fim de
fazer várias guerras e manter, ao mesmo tempo, a sua magnificência, gastara
todo o tesouro que possuía. Um incidente fortuito criou-lhe a necessidade
urgente de uma boa soma de dinheiro. Não via onde poderia obtê-la, quando lhe
ocorreu o nome de um rico judeu, Melquisedeque, que emprestava dinheiro a juros
em Alexandria, e que ele considerava capaz de lhe prestar esse serviço em
qualquer altura. O homem era, porém, tão avarento que nunca faria tal oferta e
a Saladino repugnava-lhe a ideia de o forçar a isso. Como, todavia, a
necessidade a tal o obrigava e não fazia outra coisa senão pensar na maneira de
se servir de Melquisedeque, resolveu mascarar a sua violência com um pretexto
razoável. Convocou o judeu, recebeu-o com familiaridade, fê-lo sentar junto de
si e disse-lhe:
- Meu caro amigo, contaram-me várias
pessoas que és muito sabedor e perito em todos os problemas relacionados com
Deus. Quero pois saber da tua boca qual das três leis, a judaica, a sarracena
ou a cristã, consideras a verdadeira.
O judeu, que era na verdade um homem
industrioso e prudente, compreendeu muito bem que o Saladino, ao fazer-lhe tal
pergunta, procurava apanhá-lo na rede das próprias palavras, e pensou que não
podia louvar nenhuma das três leis mais do que as outras sem com isso permitir
ao Sultão atingir os seus fins. A necessidade de uma saída hábil aguçou-lhe o
engenho e fez com que lhe ocorresse prontamente a resposta desejada:
- Meu senhor, é uma pergunta
importante essa que me fazeis e, para vos dizer o que penso a tal respeito,
preciso de vos contar uma historieta.
Se a memória não me atraiçoa,
recordo-me de muitas vezes ter ouvido falar de um homem rico e poderoso que
possuía um tesouro no qual, entre outras jóias de grande preço, havia um
belíssimo e valioso anel. Querendo prestar homenagem ao seu valor e à sua
beleza e deixá-lo para todo o sempre aos seus descendentes, determinou que
aquele dos seus filhos nas mãos do qual o anel fosse encontrado seria o seu
herdeiro e deveria ser honrado e respeitado pelos outros como primogénito. O filho
a quem foi deixado o anel fez com os seus descendentes o que fizera o seu
predecessor. Em suma, o anel andou de mão em mão ao longo de uma série de
herdeiros. Acabou por cair nas mãos de um homem que possuía três filhos belos e
virtuosos e muito obedientes a seu pai, razão por que este a todos amava
igualmente. Mas os jovens, que conheciam a lei do anel, levados pela ambição de
ocuparem o primeiro lugar na família, pediam todos eles ao pai, já velho, que
lhes deixasse o anel à hora da morte. O bom homem, porém, tinha por todos eles
o mesmo afecto e por isso não sabia designar um herdeiro. Pensou então satisfazer
a todos, prometendo-lhes igualmente o anel. Secretamente, encarregou um hábil
artista de fazer outros dois, que ficaram tão parecidos com o primeiro que o
próprio autor mal distinguia o autêntico. E, quando a morte se aproximou,
deu-os, às escondidas, a cada um dos filhos.
Estes, após a morte do pai,
reclamaram a herança e a honra da progenitura. Como negassem uns aos outros
todas as qualidades, resolveram provar o fundamento dos seus direitos mostrando
o anel. E viram os anéis tão iguais uns aos outros que não se podia descobrir
qual era o verdadeiro e ficou pendente (e ainda está!) a questão de saber quem
era o autêntico herdeiro do pai.
O mesmo vos direi, meu senhor, das
três leis dadas aos três povos por Deus Pai. Cada um deles, certo da sua herança,
pensa deter a verdadeira lei e os seus mandamentos. Mas, tal como com os anéis,
a questão continua pendente.
Saladino reconheceu que o judeu se
libertara optimamente do laço que ele lhe havia armado diante dos pés. Resolveu
então falar-lhe realmente da sua necessidade de dinheiro a ver se ele estava
disposto a prestar-lhe tal serviço. Assim fez, confessando-lhe o que tencionara
fazer se ele não houvesse respondido com tanta prudência. O judeu entregou-lhe
de livre vontade a soma que Saladino requeria e este reembolsou-o
integralmente. Além disso, deu-lhe grandes presentes e sempre o considerou como
um amigo, mantendo-o a seu lado, num cargo importante e honroso.”
Giovanni Boccaccio, “Saladino e a
lenda dos três anéis”, in Decameron,
citado em Um Cânone Literário para a
Europa, org. de Helena Carvalhão Buescu et al., Vila Nova de Famalicão,
Edições Húmus, 2012, pp.58-59.
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