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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

SALADINO E A LENDA DOS TRÊS ANÉIS


Estátua de Saladino (1174-1193), em Damasco.
Imagem daqui.




“(…) Deveis saber (…) que se a inépcia derruba muitas vezes os homens das boas situações que possuem, condenando-os à pior das misérias, o sentido do a-propósito, pelo contrário, livra o indivíduo avisado dos perigos e dá-lhe um repouso grande e total. O facto de a estupidez arrastar os homens da felicidade para a miséria é uma verdade de que há, sob os nossos olhos, muitos exemplos. De momento, não tenciono referir-me a tal coisa. Todos os dias se nos oferecem mil provas disso. A minha historieta mostrar-vos-á, porém, em poucas palavras, e tal como vos prometi, que o sentido do a-propósito pode ser um instrumento de salvação.
            O seu valor excepcional permitiu a Saladino não só tornar-se, apesar da sua origem modesta, sultão de Bagdad, mas também conseguir muitas vitórias sobre os reis sarracenos e cristãos. Ao fim de fazer várias guerras e manter, ao mesmo tempo, a sua magnificência, gastara todo o tesouro que possuía. Um incidente fortuito criou-lhe a necessidade urgente de uma boa soma de dinheiro. Não via onde poderia obtê-la, quando lhe ocorreu o nome de um rico judeu, Melquisedeque, que emprestava dinheiro a juros em Alexandria, e que ele considerava capaz de lhe prestar esse serviço em qualquer altura. O homem era, porém, tão avarento que nunca faria tal oferta e a Saladino repugnava-lhe a ideia de o forçar a isso. Como, todavia, a necessidade a tal o obrigava e não fazia outra coisa senão pensar na maneira de se servir de Melquisedeque, resolveu mascarar a sua violência com um pretexto razoável. Convocou o judeu, recebeu-o com familiaridade, fê-lo sentar junto de si e disse-lhe:
            - Meu caro amigo, contaram-me várias pessoas que és muito sabedor e perito em todos os problemas relacionados com Deus. Quero pois saber da tua boca qual das três leis, a judaica, a sarracena ou a cristã, consideras a verdadeira.
            O judeu, que era na verdade um homem industrioso e prudente, compreendeu muito bem que o Saladino, ao fazer-lhe tal pergunta, procurava apanhá-lo na rede das próprias palavras, e pensou que não podia louvar nenhuma das três leis mais do que as outras sem com isso permitir ao Sultão atingir os seus fins. A necessidade de uma saída hábil aguçou-lhe o engenho e fez com que lhe ocorresse prontamente a resposta desejada:
            - Meu senhor, é uma pergunta importante essa que me fazeis e, para vos dizer o que penso a tal respeito, preciso de vos contar uma historieta.
            Se a memória não me atraiçoa, recordo-me de muitas vezes ter ouvido falar de um homem rico e poderoso que possuía um tesouro no qual, entre outras jóias de grande preço, havia um belíssimo e valioso anel. Querendo prestar homenagem ao seu valor e à sua beleza e deixá-lo para todo o sempre aos seus descendentes, determinou que aquele dos seus filhos nas mãos do qual o anel fosse encontrado seria o seu herdeiro e deveria ser honrado e respeitado pelos outros como primogénito. O filho a quem foi deixado o anel fez com os seus descendentes o que fizera o seu predecessor. Em suma, o anel andou de mão em mão ao longo de uma série de herdeiros. Acabou por cair nas mãos de um homem que possuía três filhos belos e virtuosos e muito obedientes a seu pai, razão por que este a todos amava igualmente. Mas os jovens, que conheciam a lei do anel, levados pela ambição de ocuparem o primeiro lugar na família, pediam todos eles ao pai, já velho, que lhes deixasse o anel à hora da morte. O bom homem, porém, tinha por todos eles o mesmo afecto e por isso não sabia designar um herdeiro. Pensou então satisfazer a todos, prometendo-lhes igualmente o anel. Secretamente, encarregou um hábil artista de fazer outros dois, que ficaram tão parecidos com o primeiro que o próprio autor mal distinguia o autêntico. E, quando a morte se aproximou, deu-os, às escondidas, a cada um dos filhos.
            Estes, após a morte do pai, reclamaram a herança e a honra da progenitura. Como negassem uns aos outros todas as qualidades, resolveram provar o fundamento dos seus direitos mostrando o anel. E viram os anéis tão iguais uns aos outros que não se podia descobrir qual era o verdadeiro e ficou pendente (e ainda está!) a questão de saber quem era o autêntico herdeiro do pai.
            O mesmo vos direi, meu senhor, das três leis dadas aos três povos por Deus Pai. Cada um deles, certo da sua herança, pensa deter a verdadeira lei e os seus mandamentos. Mas, tal como com os anéis, a questão continua pendente.
            Saladino reconheceu que o judeu se libertara optimamente do laço que ele lhe havia armado diante dos pés. Resolveu então falar-lhe realmente da sua necessidade de dinheiro a ver se ele estava disposto a prestar-lhe tal serviço. Assim fez, confessando-lhe o que tencionara fazer se ele não houvesse respondido com tanta prudência. O judeu entregou-lhe de livre vontade a soma que Saladino requeria e este reembolsou-o integralmente. Além disso, deu-lhe grandes presentes e sempre o considerou como um amigo, mantendo-o a seu lado, num cargo importante e honroso.”

Giovanni Boccaccio, “Saladino e a lenda dos três anéis”, in Decameron, citado em Um Cânone Literário para a Europa, org. de Helena Carvalhão Buescu et al., Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2012, pp.58-59.



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