As Tentações de Santo Antão, detalhe do tríptico de Hieronymus Bosch (1500)
Imagem daqui.
“- Vem comigo – diz pegando-me na mão e puxando-me para dentro do quadro, já don Beltrán cabriolava lá adiante.
Não sei como mas creio que sobrevoámos as águas de um pântano horrível povoado de monstros e logo nos encontrámos em cima duma espécie de palco. Em frente de nós a torre em ruínas de um castelo. Passeia pelos muros escalavrados uma gazela que traz às costas uma ferreirinha, na escuridão um avejão com asas sinistras e rabo de cobra vigia do alto o terreno e um monstro misto de lagarto e ave dependurada da beira das ruínas espia para baixo, onde se abre uma como gruta (…).
Só agora reparava. Antão está ali (…). Rodeiam o santo uns estranhos seres, por minha fé. Da esquerda vejo um cortejo de donas bem arriadas e coifadas que à volta de mesa redonda servem extravagantes acepipes: uma delas, de tez morena, oferece com a direita um copo de não se sabe quê, a seu lado, muito branca, acolita outra e a seguir uma negra ergue ao alto uma salva com um pequeno macaco que por sua vez eleva um ovo acima da cabeça; atrás delas, no focinho-trombeta trombeteia um ser encapuchado de negro (…).
- É notável, Damião, quanto aqui acontece. Repara mais uma vez no quadro…
- Mas eu estou dentro dele com estes companheiros. Não me canso de olhar, de tentar desvendar tudo isto que me rodeia.
- Atenta nos seres disformes, monstruosos que o autor criou.
- Tenho-o esmiuçado.
- De um modo geral dir-se-ia que o pintor não se deixou cair na vulgaridade de repetir seres fabulosos da Antiguidade. Não há aqui grifos, sereias, esfinges, harpias, polifemos, unicórnios, basiliscos, cérberos… (…)
- … voou ao ar, escavou a terra, mergulhou nos pântanos, poços e furnas da água, entrou nas fráguas do fogo…
- … e tomou rápidos apontamentos…
- … de bicos, garras, asas, espinhos, ossos, girinos, cascas, cepos retorcidos, focinhos, presas, fauces, dentes aguçados, caveiras, espetos, élitros (…)
- Grande século é o nosso – afirmou Hitlodeu. – Não pequeno contributo para esta nova visão das coisas, do mundo, da vida – costumes, crenças, diferenças de raças, cor da pele, pensar -, trouxeram os descobridores da Terra a esta nascente idade. Julgo que só se pode compreender este quadro com os olhos do mundo… no tempo e no espaço…
- E este gosto, este renascer do mundo antigo grego e romano? – perguntei em minha ingenuidade. – Não. Não posso concordar contigo. Seria um paradoxo…
- Paradoxo aparente – interveio Erasmo. – Este renascimento significa o desejo de que nada ficará como estava e o homem há-de ocupar de novo o seu lugar de centro da cultura e da vida. Não é a isso que se chama humanismo?”
Fernando Campos, A Sala das Perguntas, Lisboa, Difel, 2005, pp. 70-75.
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