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“«HAVERÁ
UMA BELEZA QUE NOS SALVE?»
Não,
não há uma beleza que nos salve. Só a bondade nos salva. E a bondade
manifesta-se, por vezes, no meio da maior fealdade. Explico-me. Uma pessoa
capaz de actos de bondade, uma pessoa com bom coração, pode ter uma cara que é
considerada feia, pode vestir-se de uma maneira que é considerada pirosa, pode
ter tido notas medíocres, pode ser um artista medíocre. Quando visitamos um
museu com obras belíssimas, como o Louvre ou o Prado, podemo-nos esquecer de
que as pessoas, os visitantes e os funcionários que estão lá connosco, são
obras mais belas do que as mais belas obras expostas que andamos a ver. Um artista
torturado pela beleza que consegue, ou que não consegue, dar ao que pinta e que
se autodestrói está equivocado. Seria preferível deixar de pintar ou pintar
obras medíocres. Como dizia o meu avô materno, que era médico, «mais vale burro
vivo do que sábio morto». Se a busca da beleza nos impede de viver, então há é
uma beleza que nos perde. E há.
Penso
que não nos devemos enganar sobre a beleza. Se a nossa obra artística, ou
outra, não implica a renúncia às coisas inúteis e a partilha, então é bastante
inútil. E as coisas inúteis, para uma poetisa, são o desejo de descrever obras
perfeitas e o de ser reconhecida pelos seus pares. Roubei à Irmã Emmanuelle a
expressão «renúncia às coisas inúteis e partilha» («renonce aux choses inutiles
et partage», in Famille chrétienne,
Numéro hors série, été 2004, p. 6). Se não há partilha, o artista é quase tão
aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si.
Os
artistas são, às vezes, muito egoístas. É verdade que as suas obras, apesar
disso, podem comunicar – mas será involuntariamente? – bons sentimentos. Parece
que estou a dizer mal da arte e não queria fazer isso.
No
Natal, uma amiga mandou-me um cartão de boas festas da Unicef com um Anjo da
Anunciação de Fra Angelico. Tenho-o em exposição no meu quarto e, quando quero
rezar, olho para ele. Mas não sou contemporânea de Fra Angelico. Não posso
tomar café e tagarelar com ele nos cafés como posso fazer com a amiga que me
enviou o anjo dele pelo Correio. Por isso o Anjo da Anunciação de Fra Angelico,
que é tão bonito, pode também ser doloroso. Fra Angelico já morreu. E não é a
beleza do anjo de Fra Angelico que me garante que Fra Angelico ressuscitará.
Um
poema de Rimbaud está cheio de violência. Há muita beleza na expressão dessa
violência. E isto é terrível. Preferia que Rimbaud não estivesse ferido a ponto
de escrever daquela maneira? Preferia. Mas não posso dizer isto assim.
A
arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser. Olho
para o Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Parece-me belíssimo. É vermelho e
dourado. É verde e azul. Mas, ao escrever assim, parece-me que estou a evocar o
poema de Rimbaud intitulado «Voyelles». A arte é um modo de lidar com a
ausência. E por isso é tão preciosa e tão perigosa. Nunca é a alegria da
presença.”
Adília Lopes, Dobra, Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp.
601-602.
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