Pieter Brueghel, O Jovem, Os Provérbios
“Provérbios burlescos
(…) O que suscita o riso é, antes de mais, a
comparação com animais, sobretudos os domésticos. Destes, a primazia vai para o
asno, depois para o gato, o perro ou cão, a galinha, o porco ou bácoro, o boi,
a mosca, o piolho, o rato. Nos outros animais, surgem com algum relevo a raposa
e o lobo, o boi, o abutre, o bode, o carneiro e o borrego. Logo se nota que os
provérbios dão conta da vida dos homens no interior da casa e se situam num
cenário doméstico. Mesmo a raposa e o lobo surgem como símbolos das forças
externas que ameaçam a casa. A companhia dos animais na lavoura, no pastorio ou
na caça inspira afinal poucos adágios. Por outro lado, e isto parece-me ainda
mais significativo, as metáforas pressupostas têm quase sempre sentido
burlesco. Na maioria dos casos o animal designa o homem ou a mulher: o galo e o
lobo referem-se a ele; a galinha, a raposa, a loba, a cabra, a sardinha
apontam-na a ela.
Pelo contrário, o asno, o gato, o cão, o
bácoro e o porco têm um sentido peculiar. O asno é como que uma espécie de
prolongamento do proprietário e que, por isso mesmo, exprime a forma de agir
simultaneamente habitual e ridícula do seu dono, as suas posições irredutíveis
e que a pressão social ou as regras morais não conseguem vencer. Assim no
célebre «Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube», ou no «Asno
morto, cevada ao rabo». Mas a polissemia é, muitas vezes, mais rica. Assim, em
«Asna velha, cinta amarela», a escolha do feminino dá um tom mais cómico à
frase e torna o significado extensivo não apenas ao dono mas à própria mulher.
O gato serve de metáfora para designar o indivíduo desconfiado «Gato
escaldado…» ou arisco e irritável «Daí vem a tosse ao gato». De qualquer
maneira, a intimidade com os animais faz deles bom espelho do homem do povo.
Sem reivindicar a sua superioridade de ser racional, o homem do povo compara-se
facilmente com eles, a si e à sua mulher; o comportamento animal serve-lhe, sem
problemas, para definir as suas qualidades ou defeitos, escolhendo, de
preferência, as situações cómicas.
O tom burlesco surge em segundo lugar, para
falar do clero ou religião, dos médicos, dos estrangeiros, das donas, dos
senhores e homens-bons e mesmo do demónio. (…) O riso é, obviamente,
subversivo. O seu tom nem sempre é agressivo, mas escarninho ou astucioso. (…)
Dos estrangeiros, os que chegam às aldeias são os beberrões e marginais,
decerto mercadores ou mercenários: «Bem canta o francês, molhado o papo». Mas
também ensinam, astuciosamente, a lidar com os senhores exigentes: «A senhor
arteiro, servidor ronceiro»; «Com teu amo não jogues as pêras, que ele come as
maduras e dar-te-á as verdes». (…)
Parece-me importante sublinhar o papel das
mulheres de idade na criação e transmissão de cultura popular: inventam os
provérbios e os contos, citam-nos ou contam-nos à lareira, para crianças e
adultos, mas, como sabem que não têm um papel claro na tomada de decisão das
famílias ou das comunidades, falam humoristicamente do seu lugar secundário,
mas imprescindível, e de um bem conhecido jeito para tirarem partido da sua
própria fraqueza, valorizando a experiência, a persistência, e mesmo a
importância económica do seu trabalho lento mas eficaz. Com ar escarninho,
devolvem as ironias dos jovens invocando o seu sentido prático e a sua
independência face aos preconceitos sociais. Sabem que constituem, afinal, um
importante suporte para a comunidade e a sua reprodução, assegurando a
transmissão das subtis regras da sabedoria popular às novas gerações. (…)
Descobrimos, assim, por meio dos refrãos, a
enorme complexidade das sociedades rurais. (…) Por detrás delas, estão
mecanismos ocultos onde, pelo menos ao nível da prática, intervêm as mulheres,
e mesmo as de idade, a quem é cometido o papel de transmitirem as fórmulas
condensadoras do saber colectivo e de ditarem os limites dentro dos quais se
devem pôr em prática as regras estabelecidas, tendo em conta o seu carácter
relativo e teórico. (…)
O riso, o sarcasmo, o burlesco servem,
portanto, ao vilão quer para exprimir a importância que o corpo, os animais e a
casa têm na sua cultura, quer para relativizar as hierarquias sociais, as
normas de respeito devido, até, às autoridades do lugar (os homens-bons) e da
família (os velhos, os parentes, os compadres e comadres). É, como salienta
Bakhtine, a forma de defesa das classes dependentes, rurais ou urbanas, perante
a dominação das classes superiores. É a arma possível quando não se pode
recorrer à revolta aberta. Não cultivam a agressão, mas a diferença.”
José Mattoso, O Essencial sobre os Provérbios Medievais Portugueses, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp.11-17.
Sem comentários:
Enviar um comentário