Edgar Degas, Café Concert (1877)
“O
MUNDO, UM PALCO
All the world’s a stage
Shakespeare, As you like it
Para Eunice Muñoz
Que aberto este recinto
e magnífico!
Sobre umas tábuas o mundo no seu jogo:
movo-me, respiro, crio gestos,
saboreio o sal da fala, meus ouvidos
comunicam-me vida – a que entreteço
e a rajada que desponta de outros
em túmido rumor, pulso que aperto.
Sei que o exterior existe,
espaço hostil
sufocante de máscaras: olhos, mãos,
palavras de metal que cegamente
encenam uma ficção cruel:
sua baça repetição, o pérfido
quotidiano, num papel que se oficia
entre um acordar aceite sem escolha
e a treva que fascina e apavora.
Nenhum cerco pode
ser-me imposto aqui:
parto em busca de todos, mesmo desses
que não conheço: por eles afoito
meu intenso trânsito num corpo
alheio sempre, obscuro, a desvelar-nos
a profundeza comum que nos liberta.
Tantos seres fui, sou:
em todos eles
me dispo da vacilante identidade
que em mim suspeito e aniquilo;
terei de reconhecer que minha morte
inteira lhes pertence e sobre a fronte
só reflicto sua fragrância de grinalda.
Na falésia deste palco,
onde o mistério
nunca é mentira mas voz a desvendar,
pressagio o naufrágio
que num espelho há-de trazer
o rosto único meu, que jamais vi.
Se eu nunca o
descobrir, quem de entre vós
ousa moldá-lo no que de si lhe revelei
e entregar-mo, já sem nenhum nome?,
- perfil de estrelas
que oferenda em seu contorno
a música pela qual a
terra ascende."
José Bento, Silabário, Lisboa, Relógio D’Água, 1992,
pp. 39-41.
Sem comentários:
Enviar um comentário