Cairo, maio de 2010
"Enfim, o
Cairo!
Em nenhuma
outra cidade esquecemos tão depressa que somos estrangeiros. Mal chega, o
viajante é arrastado pelo turbilhão dos boatos, das histórias, das caretas
indiscretas. Cem desconhecidos o abordam, falam-lhe ao ouvido, tomam-no como
testemunha, agarram-no pelo ombro para melhor provocarem as pragas ou os risos
que esperam. A partir daí, está dentro do segredo, detém o início de uma
história fabulosa, é-lhe necessário conhecer a continuação, nem que tenha de
ficar até à próxima caravana, até à próxima festa, até à estação das cheias. Mas,
desde logo, começa uma nova história.
Nesse ano,
quando desembarquei estafado e exausto, a uma milha da minha nova morada, toda
a cidade, apesar de ferida de morte pela peste, troçava sem entraves do
«augusto olho», o do monarca, entenda-se. O primeiro vendedor de xarope,
adivinhando a minha ignorância e deleitando-se com ela, considerou seu dever
esclarecer-me, detendo todos os negócios, afastando com ar desdenhoso os seus
sequiosos clientes. A história que me contaram mais tarde nobre e mercadores em
nada diferia da deste homem. (…)
O meu
interlocutor tinha acabado de me oferecer um cálice de xarope de rosas e
propôs-me que me sentasse sobre uma caixa de madeira, o que eu fiz. Em redor de
nós, já não havia qualquer ajuntamento. (…)
Mesmo na
véspera da minha chegada ao Cairo, boatos de uma conspiração percorriam a
cidade. Tinham, naturalmente, chegado aos ouvidos do sultão, que decretara um
recolher obrigatório do crepúsculo até à alvorada.
- É por
isso que – terminou o vendedor de xarope apontando-me o Sol no horizonte – se a
tua casa é longe é melhor correres, porque dentro de sete graus qualquer pessoa
que for encontrada na rua será flagelada em público até sangrar.
Sete graus
era menos de uma meia hora. Olhei em meu redor. Não havia senão soldados, em
todos os cantos das ruas, que olhavam nervosamente para os lados do pôr do Sol.
Não ousando nem correr nem perguntar o caminho, com medo de parecer suspeito,
contentei-me em caminhar ao longo do rio, apressando o passo (…).
Dois soldados
vinham ao meu encontro, com passos e olhares inquiridores, quando vi um caminho
à minha direita. Meti-me por ele sem um momento sequer de reflexão, com a
curiosa impressão de o ter percorrido todos os dias da minha vida.
Estava em
casa. O jardineiro estava sentado no chão diante da porta, com o rosto fechado.
Saudei-o com um gesto e agarrei ostensivamente nas minhas chaves. Sem uma
palavra, ele afastou-se para me deixar entrar, não parecendo de forma alguma surpreendido
por ver um desconhecido penetrar assim na morada do seu senhor. A minha certeza
havia-o tranquilizado. Senti-me mesmo assim obrigado a explicar-lhe a razão da
minha presença, retirei do bolso o documento assinado pelo copta. O homem não o
olhou. Não sabendo ler, confiou em mim, retomou o seu lugar e não se mexeu
mais.”
Amin Maalouf, Leão, o Africano, Bertrand Editora, 2000, pp.277-279
Pode ler-se nas badanas do livro:
“Esta
autobiografia imaginária parte de uma história verdadeira. Em 1518 um
embaixador magrebe, ao regressar de uma peregrinação a Meca, é capturado por
piratas sicilianos que o oferecem de presente a Leão X, o grande Papa da
Renascença. Este viajante chamava-se Hassan-al-Wazzan. Veio a tornar-se
Jean-Léon de Médicis, chamado Leão, o
Africano.
Assim, depois de
ter vivido em Granada, sua cidade natal, em Fez, em Tombuctu, no Cairo, em
Constantinopla, Leão passa vários anos em Roma, onde ensina árabe, escreve a
parte hebraica de um dicionário poliglota, e redige, em italiano, a célebre Descrição de África que, durante quatro
séculos, se mantém o livro de referência essencial para o conhecimento do
continente negro. Mas, mais fascinante ainda do que a obra de Leão, é a sua
vida, a sua aventura pessoal, em que pontuam os grandes acontecimentos do seu
tempo: durante a Reconquista encontrava-se em Granada, de onde teve que fugir à
Inquisição, acompanhado da família; encontrava-se no Egipto aquando da sua
tomada pelos Otomanos; encontrava-se na África negra durante o apogeu do
império de Askia Mohamed Touré; encontrava-se por fim em Roma durante as mais
belas horas da Renascença, bem como no momento do saque da cidade pelos
soldados de Carlos V.
Homem do Oriente
e do Ocidente, homem de África e da Europa, Leão, o Africano é, de certa maneira, o antepassado da humanidade
cosmopolita de hoje. (…)
Nascido no
Líbano em 1949, Amin Maalouf vive em Paris desde 1976. (…)”
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